18 novembro 2009

"O Menino que era o Menino Jesus"

Antes de começarem a ler o que vai por aqui abaixo e para evitar que a "minha sopa de letras" se entorne, quero aqui dizer que não tenho intenção de ferir, ridicularizar ou ofender ninguém. E desde já apresento o meu pedido de desculpas se alguém se sentir atingido. Na minha infância tive uma educação extremamente católica e respeito muito, mas muito mesmo todas as religiões.

Lembram-se da polémica com Saramago relativamente à Igreja Católica??? Então, convido-vos a ler este poema escrito por Fernando Pessoa (heterónimo Alberto Caeiro).



Alberto Caeiro in "Guardador de rebanhos"

VIII - Num Meio-Dia de Fim de Primavera

Num meio-dia de fim de primavera
Tive um sonho como uma fotografia.
Vi Jesus Cristo descer à terra.
Veio pela encosta de um monte
Tornado outra vez menino,
A correr e a rolar-se pela erva
E a arrancar flores para as deitar fora
E a rir de modo a ouvir-se de longe.
Tinha fugido do céu.
Era nosso demais para fingir
De segunda pessoa da Trindade.

No céu era tudo falso, tudo em desacordo
Com flores e árvores e pedras.
No céu tinha que estar sempre sério
E de vez em quando de se tornar outra vez homem
E subir para a cruz, e estar sempre a morrer
Com uma coroa toda à roda de espinhos
E os pés espetados por um prego com cabeça,
E até com um trapo à roda da cintura
Como os pretos nas ilustrações.

Nem sequer o deixavam ter pai e mãe
Como as outras crianças.
O seu pai era duas pessoas
Um velho chamado José, que era carpinteiro,
E que não era pai dele;
E o outro pai era uma pomba estúpida,
A única pomba feia do mundo
Porque não era do mundo nem era pomba.
E a sua mãe não tinha amado antes de o ter.
Não era mulher: era uma mala
Em que ele tinha vindo do céu.
E queriam que ele, que só nascera da mãe,
E nunca tivera pai para amar com respeito,
Pregasse a bondade e a justiça!

Um dia que Deus estava a dormir
E o Espírito Santo andava a voar,
Ele foi à caixa dos milagres e roubou três.
Com o primeiro fez que ninguém soubesse que ele tinha fugido.
Com o segundo criou-se eternamente humano e menino.
Com o terceiro criou um Cristo eternamente na cruz
E deixou-o pregado na cruz que há no céu
E serve de modelo às outras.
Depois fugiu para o sol
E desceu pelo primeiro raio que apanhou.

Hoje vive na minha aldeia comigo.
É uma criança bonita de riso e natural.
Limpa o nariz ao braço direito,
Chapinha nas poças de água,
Colhe as flores e gosta delas e esquece-as.
Atira pedras aos burros,
Rouba a fruta dos pomares
E foge a chorar e a gritar dos cães.
E, porque sabe que elas não gostam
E que toda a gente acha graça,
Corre atrás das raparigas pelas estradas
Que vão em ranchos pela estradas
Com as bilhas às cabeças
E levanta-lhes as saias.
A mim ensinou-me tudo.
Ensinou-me a olhar para as cousas.
Aponta-me todas as cousas que há nas flores.
Mostra-me como as pedras são engraçadas
Quando a gente as tem na mão
E olha devagar para elas.
Diz-me muito mal de Deus.
Diz que ele é um velho estúpido e doente,
Sempre a escarrar no chão
E a dizer indecências.
A Virgem Maria leva as tardes da eternidade a fazer meia.
E o Espírito Santo coça-se com o bico
E empoleira-se nas cadeiras e suja-as.

Tudo no céu é estúpido como a Igreja Católica.
Diz-me que Deus não percebe nada
Das coisas que criou -
"Se é que ele as criou, do que duvido" -
"Ele diz, por exemplo, que os seres cantam a sua glória,
Mas os seres não cantam nada.
Se cantassem seriam cantores.
Os seres existem e mais nada,
E por isso se chamam seres."
E depois, cansado de dizer mal de Deus,
O Menino Jesus adormece nos meus braços
E eu levo-o ao colo para casa.

4 comentários:

  1. às vezes as polémicas servem apenas para alimentar a falta do que dizer.

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  2. Gostei do cuidado que tiveste antes de escreveres o poema. Quem nos conhece, quem nos lê muitas vezes,sabe qual o sentido das nossas palavras, quem não, pode, realmente deturpar-nos. Mas, o que é certo é que todos temos liberdade para pensarmos, se não temos devíamos e queremo-la. Não conhecia este poema de Fernando Pessoa, aliás os poemas não me cativam mas este tem uma grande mensagem. A mesma mensagem que Saramago tenta há muito divulgar. Ninguém devia ser fanático ao ponto de não perceber os sinais que a igreja tem vindo a distribuir. Cada um que os interprete. É o que eu tento fazer, faço-o para me salvaguardar. Para mim só há uma coisa importante: o ser humano. Quem não o respeita, quem não se preocupa com ele não pode acreditar num Deus, nem em si próprio, já que nem humano é. O material nada vale comparando-o com uma vida. Fiz um post sobre a polémica a que te referes.
    Beijos

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  3. Olá meninas!
    Magia da Noite: Obrigada por teres passado por aqui! Na verdade, sempre considerei as "polémicas" uma forma "simpática" de se ser hipócrita! É mesmo para isso que elas - as polémicas - servem: para deitar cá para fora toda a hipocrisia e falta de coragem de alguns seres humanos!

    Brown Eyes: Obrigada por teres passado por aqui. O grande problema da sociedade (à parte da hipocrisia e da falta de coragem)é o comodismo. As pessoas acomodaram-se à ideia que a Igreja Católica lhes passou: O culto desmedido. A obrigatoriedade. A santidade. O "se fizeres assim vais para o céu, se não, vais para o inferno".
    Na minha singela opinião acho que "o acreditar ou não" deve estar dentro de cada um. A religião move massas, hoje em dia. E está cada vez mais dúbia. Eu cá desisti de ser católica! Continuo com fé em alguma coisa, sim! Mas sou muito mais espiritual que religiosa.

    Bjs!!

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  4. lindas palavras as que aqui deixaste
    obrigada pela visita
    um beijo

    ResponderEliminar

queria escrever aqui qualquer coisa, mas não sei o quê... por isso não escrevo nada, prontoS! Escreve tu... se queres, o espaço é teu, mesmo...! -.-'

::post it::

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