03 fevereiro 2010

O Feiticeiro das Pedras do Mar

 
Era um velho muito velho, que vivia numa casa de palha, na praia, sozinho e feliz.
Os putos costumavam passar pela casa de palha e, entoando risinhos de gozação ou, talvez brincadeira, chamavam pelo "Feiticeiro das Pedras do Mar" - era assim que por todos era conhecido - e depois, os mais envergonhados, fugiam a correr, os outros, mais corajosos, ficavam à espera que reagisse. Reagia sempre. Tanto para os que fugiam como para os que ficavam, com um sorriso. O velho sorria sempre. Com aquela dentadura mais branca que sei lá o quê - se ele não fosse velho, juraria que eram dentes de leite - sorria para os gaiatos. Nunca falava - aliás nunca lhe ouvi uma palavra, nem resmungada, nem rezada! Mas sorria sempre.

Ninguém lhe sabia o nome - nem eu sei - e também ninguém lhe conhecia as raízes. Era um velho muito velho. Mas só se sabia isso porque o velho era o mesmo desde o tempo em que os pais daqueles putos eram putos. Já eles por ali passavam com risinhos a chamar pelo "Feiticeiro".
Era preto que nem carvão, o velho. De caracolinhos brancos e bem cerrados, mas sem uma única linha da passagem do tempo no seu rosto.
Toda a vila estava habituada apenas à sua casa de palha e à sua presença ali... Ali mesmo, entre uma duna e outra, naquela praia que era a dele... Todos os outros, mesmo não sabendo, eram seus convidados de todos os dias. Fosse verão ou inverno. A praia tinha sempre gente. E sorria para as gentes como se estivesse a recebê-los nalguma festa. 
Quem ia à "praia do feiticeiro" - assim era conhecida - não entrava sem o cumprimentar, nem saía sem se despedir... nem que fosse só com um aceno.
Mas também ninguém sabia que conversas se travariam na sua cabeça, por detrás daquele sorriso branco.

Mas por mais "feiticeiro" que fosse achado pelas gentes daquela vila - e pelas demais, incluindo eu - na verdade, o velho não o era. Não era adivinho, não lançava búzios, não engendrava poções mágicas.
No entanto, o velho tinha uma curiosidade, de que poucos falavam, mas eu atrevo-me aqui a contar-vos. Tinha sete pedras nos, ainda, bolsos das suas calças mais que rasgadas (quase desfeitas, acreditem). Mas aqueles bolsos resistiam e albergavam todos os dias o mesmo peso. Há anos que assim era. Quatro pedras no esquerdo e três no direito. E nunca as trocava de bolso. Sabia exactamente quais eram "as quatro" e quais eram "as três". Ninguém sabia o que fazia ele com aquelas pedras. Volta e meia andava com elas na mão. Às vezes parecia que falava com elas. Outras vezes parecia que as lia. Outras ainda, que as ouvia.

Quando o sol estava alto, o velho colocava-as por cima da palhoça durante algum tempo. E depois retirava-as directamente para os respectivos bolsos. Repetia isto sempre que havia sol.

Um dia os putos passaram pela casa de palha, com os habituais risinhos de gozação, ou brincadeira - nunca cheguei a perceber -  e o velho... nada! O sol estava quente e as pedras como de costume estavam em cima da palhoça. Mas do velho, nem sinal.
Os mais corajosos atreveram-se a espreitar por entre as palhas já ressequidas pelo sol e nada mais conseguiram avistar que a sua esteira de palha e um caneco de barro.
O mais pequenino ousou, ainda, tocar nas pedras do velho - nunca ninguém ousara - e percebeu que faltava uma... Toda a gente dizia que o velho tinha sete pedras, mas o puto só contava seis...

Correram para a vila, ofegantes e assustados. Depressa se espalhou a notícia e mais depressa ainda se juntaram as gentes na "praia do feiticeiro".  Os sons naturais da praia foram abafados por um burburinho irritantante de especulações - algumas delas descabidas, confesso. Nem nas pegadas na areia poderiam tentar descobrir fosse o que fosse, pois se a praia estava cheia de gente, então as pegadas do velho haviam desaparecido.

O sol foi-se e, pouco a pouco as pessoas foram saindo da praia. Ficaram os putos. Ainda estarrecidos e, pelo que percebi, um pouco enfurecidos com o velho.

- "Mas afinal onde se meteu o Feiticeiro das Pedras do Mar?" - perguntou um deles já desvairado.
- " Foi procurar a pedra que lhe falta. Se calhar está dentro do mar..." - respondeu o mais pequeno - aquele que contou as pedras.

Instalou-se um silêncio cortante. E o puto mais pequeno vira as costas zangado e diz:

- "A Praia do Feiticeiro" não vai voltar a ser a mesma se o velho não encontar a pedra... Disso eu tenho a certeza!" E foram-se embora.


Participação de um velho "feiticeiro" no desafio do mês de Fevereiro para a Fábrica de Letras

40 comentários:

  1. Os velhos são essa entidade sempre presente que nos acompanha ao longo da vida. Eram velhos quando nascemos, quando tivemos consciência deles e serão velhos para sempre... até à morte.

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  2. Johnny... é a isso que chamo a meiga eternidade da velhice!

    Obrigada pela visita!

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  3. Não tem nada a ver com este teu belo texto, mas tem muito a ver com a velhice: vi hoje, absolutamente por acaso, um magnífico filme intitulado "Os Savage" (nome de uma família, como os Costa, p.ex.), e que relata a triste realidade de um casal de irmãos a braços com o "problema" do envelhecimento e progressivo estado de demência do seu pai.
    É tão bom, como triste, e fez-me pensar imenso nessa terrível realidade da vida.
    Beijinho.

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  4. Lala, adorei o teu texto. Conheci alguém assim, que não era Feiticeiro, mas o qual também a vida perdeu o rasto. Concordo com o johnny, os velhos são velhos quando nascemos e continuarão a sê-lo até morrermos. São igualmente uma fonte de experiência e sabedoria, para aqueles que não têm medo, nem vergonha de querer aprender com eles.
    Devíamos amar e cuidar mais dos nossos velhos, pois se a vida nos permitir, é para junto deles que todos caminhamos, um pouco todos os dias e sem percebermos.

    Bjs
    Helga

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  5. Mais um bom texto com pitadas do realismo fantástico. Parabéns.

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  6. Gostei deste história do feiticeiro das pedras do mar. Por vezes, temos a noção de que os velhos, os pais, os avós, são eternos e só se sente falta de um idoso, mesmo familiar, quando este desaparece...e percebemos o que perdemos...
    O filme "Os Savages" de que o pinguim fala, já vi há bastante tempo e é muito bom filme sobre a temática da velhice e como os filhos lidam com isso!!Beijinhos

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  7. Olá Pinguim! Pois, infelizmente não acontece só na ficção... Aliás por vezes as pessoas precisam da ficção para acordar para a realidade das coisas e da vida!
    Obrigada pelas tuas letras! Beijinho*

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  8. Olá Helga! É isso mesmo! Se não tratarmos dos nossos velhos, vamos continuar a ver "velhos" tristes, sozinhos e desamparados. A foto que colocaste na tua participação devia estar presente nas memórias de todos os filhos e netos para que se lembrem sempre que muitos daqueles cabelos brancos e muitas daquelas rugas nasceram por nós... para que se lembrem sempre que a velhice deve ser feliz. A velhice merece ser feliz!

    Beijinho*

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  9. Olá Eva! O filme ainda não o vi, mas vou tratar disso. É muito triste sabermos que as pessoas só sentem falta das pessoas quando essas nos faltam...

    Obrigada! Beijinhos*

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  10. Olá Lala
    Gostei muito do teu feiticeiro, e prefiro pensar que ele foi à procura da sua pedra.
    É verdade, às vezes, só sentimos falta deles quando... faltam.
    Bjs

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  11. Olá Teresa!
    Obrigada por teres vindo conhecer o velho feiticeiro!

    Bjs*

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  12. Obrigada pela visita e pelo comentário. Gostei muito do teu texto, é com um sorriso que devemos encarar os outros e a vida em todas as suas fases. Kisses

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  13. Uau que blog mais giro! Vim retribuir a visita! Muito bonito o teu conto! bjs

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  14. Adorei a tua história, simplesmente fantástica.
    Parabéns.
    Bjocas
    Patty

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  15. Lala esta história fez-me lembrar as histórias que ouvia em terras africanas e que me deixavam encantada. Os feiticeiros eram as personagens principais. São terras onde o misticismo está muito enraizado, elas são terras místicas, que nos encantam pela sua beleza e simplicidade. O mesmo acontece com o teu conto que termina com um enigma por desvendar. Não se sabe onde terá ido o velho, porque terá levado aquela pedra e não outra ou todas? Linda, fascinante, misteriosa. Parabéns. Beijinho grande

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  16. O VELHO E OS SEUS MISTÉRIOS POR DESVENDAR E QUE APESAR DE PARECER QUE OS GAROTOS GOZAM,TROÇAM DELE QUANDO ELE DESAPARECE À PROCURA DA PEDRA OU TALVEZ NÃO...OS PUTOS FICAM A PENSAR...E A PRAIA NÃO É A MESMA SEM A SUA PRESENÇA...

    BEIJO

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  17. Embora fossem pedras, faziam parte a sua vida ou arrisco-me a seguir a tua história fantástica e dizer que essas pedras poderiam ser mesmo a essência da sua vida...
    O sol energizava-as e elas por sua vez retribuíam-lhe a energia que ele necessitava. Era velho, mas tinha vida... com a perda de uma delas a sua vida apagou-se...

    Podemos transportar o fantástico das "pedras" e transformá-las nas pessoas queridas que os "velhos" veêm partir antes deles... e o desgosto é tão grande que se deixam simplesmente morrer.


    beijinhos

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  18. Bom dia.
    Maravilhoso... emocionante!

    Adorei no contexto, o termo "puto".
    E "puto", referindo-se aos pais do "puto".
    Um abraço.

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  19. Brown Eyes... Sabes...? Este conto começou de uma forma muito engraçada: parte da primeira frase é de uma canção que conheço (Era um velho muito velho, que vivia numa casa de palha...). A ideia de ser um "preto velho" também não surgiu por acaso. Em África, nas regiões onde as tradiçoes continuam bem vivas os velhos, são tratados com o máximo de respeito por "Preto Velho", ou "Pai Velho / Mãe Velha". As sete pedras, para mim simbolizam sete princípios com os quais tento todos os dias regular a minha vida: Humildade, Sinceridade, Amor, Dar, Ajudar, Receber e Coragem...
    Outras linhas deste conto, têm outros significados. Não o escrevi ao acaso, mas também não foi uma coisa muito estudada1. Obrigada pelo teu comentário!

    Beijinho grande**

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  20. Olá Pedrasnuas: Sim basicamente pode ser isso... pareço um argumentista que anda por aí na bela da divagação em busca de uma continuação para este conto. A praia não será a mesma, diz o puto... mas será melhor? Pior? A pedra desapareceu... e o velho também... o puto ainda pensa que poderão estar no mar... mas estarão? Estarão sequer juntos, o velho e a pedra? Ainda vou "descobrir" o que vai acontecer!

    Obrigada! Beijinho*

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  21. Tulipa: É bem verdade...Encarar a vida com um sorriso dá muito mais alento ao viver!!

    Obrigada!

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  22. MZ: Concordo plenamente com a tua visão! O meu "preto velho" tinha vida... E aquelas pedras, para mim têm um significado... mas talvez para o velho tenham outro... quem sabe? Vamos ver até onde vai a minha imaginação. Só tenho de "descobrir" onde se meteu ele!!:D E fico feliz por teres gostado!

    Obrigada! Beijinho*

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  23. Amapola: Seja bem vinda!

    Gosto muito das palavras "puto" (inocência) e "velho" (sabedoria)!
    Muito obrigada pela sua visita e pelo seu comentário carinhoso.

    Volte sempre!
    Beijinho*

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  24. Lala, gostei muito da tua história, escreves com o coração. Parabéns por isso.

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  25. Olga, com o coração sabe sempre melhor. É pegar na caneta e deixar fluir. As palavras que nos saem do coração só podem ser puras porque não é no coração que residem as coisas más.. é na cabeça..

    Obrigada pela tua visita e pelo comentário!

    Beijinhos**

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  26. Onde estará o velho sorridente?

    Linda história, minha amiga, que até os adultos faz encantar!!!
    Grande parte delas têm um fim que o próprio autor escolhe. Tua aqui "alimentaste" um final que qualquer pessoa pode criar, de acordo com a sua própria imaginação!
    Por momentos, fizeste-me sonhar... e é isso que pretende quem gosta de ler, de sonhar, de fantasiar, de viver a proppria história como fosse uma personagem que fizesse parte dela!
    Continua com o dom da escrita, com a magia das palavras!
    Um final para esta história não tenho... apenas sei, que após a sua leitura dei por mim parada a pensar... "onde estará o velho da praia?".

    ADORO VOCÊ!

    Ritsmania

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  27. Ritinha: Hihihi... Pois olha que nem eu sei onde estará o velho! Mas ainda vou descobrir. Ainda vou arranjar maneira de o encontrar e "devolvê-lo" àquelas gentes que sentiram a sua falta que precisam mais dele do que pensam!
    Obrigada pela tua tão esperada visita e pelo comentário que me deu um empurrãozinho para ir "procurar" o velho!

    ADORO VOCÊ!!

    Beijinho**

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  28. Não sabia da existência da praia do velho feiticeiro, podes crer que sem uma pedra ou uma areia, nunca mais a praia será a mesma. O mesmo se passa em cada dia que passa na nossa vida, quando nos tiram dias de vida, nunca mais somos os mesmos e a velhice será mais triste e curta.
    Gostei de aqui vir.
    Jinho*

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  29. Olá Timon!! Obrigada pela visita e pelo comentário! É bem verdade o que dizes e também vai muito de encontro ao sentido que quis dar a esta estória. Na vida de cada pessoa existem "coisas". Valores, pessoas, situações, seja lá o que for, que se se perdem... nada volta a ser o mesmo...! Nem nós!

    Beijinho*

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  30. Os velhos transportam em si o poder do tempo, o passar de vagas de enorme tamanho por nós...ondinhas de pouca espuma( ainda!) Lindo adorei
    Um beijo

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  31. Olá free_soul! Sim... o poder do tempo, banhado de sabedoria!
    Obrigada!

    Beijo*

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  32. Florzinha, me encantei com o seu cantinho!!

    Muito legal esse texto!!

    Parabéns pelo blog!!

    Boa semana!!

    beijo

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  33. Gosto imenso do teu tom descontraído e do teu relato na primeira pessoa que sai de dentro do texto. ;)

    Mais uma bela história, cheia de fantasia e ternura.

    bjinhos*

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  34. Ó Ginger... e eu lá ia escrever sem ter que me enfiar no meio da história?? Hihihi... É uma forma de "ver" o que estou a imaginar. Estou lá, eu vi, ninguém me contou! Vês onde quero chegar?

    Beijinhos**

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  35. Lala, isso não vale, onde foi parar o velho feiticeiro? Cada um fica com a sua teoria, certo?
    *

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  36. Olá Catsone!! Pois... Por enquanto cada um imaginará o resto da estória à sua maneira. Acaba por ser uma maneira de envolver aqueles que me lêem!!

    Obrigada pela tua visita!

    Beijinho**

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queria escrever aqui qualquer coisa, mas não sei o quê... por isso não escrevo nada, prontoS! Escreve tu... se queres, o espaço é teu, mesmo...! -.-'

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